segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

♪♫ Eu não presto mas eu te amo ♪♫ ou Eu não empresto mais meu piano!


    Na segunda metade dos anos 60, a maioria da garotada usava um penteado tipo beatles. Principalmente os garotos roqueiros. E eu não fugia à regra. E o que era pior...havia um monte de meninas míopes que me achavam parecido com o Paul McCartney.
     Eu havia sido aprovado no vestibular para o curso de Odontologia e fui cursar o primeiro ano da faculdade na cidade de Piracicaba, no interior de SP. Logo no primeiro dia de aula, nem bem pisei na escola e os malvados veteranos rasparam meu cabelo na máquina zero. De “paul dos pobres” me tornei o “vin diesel depois da gripe”.
     Não é difícil imaginar a vida de um estudante careca, duro, morando numa “república”, dividindo um velho e sujo casarão com mais nove colegas em igual situação. A alimentação era severamente controlada na casa e eu nunca tinha dinheiro suficiente para um lanche ou pelo menos um refrigerante. Quando reunia ânimo, eu saía vagando, subnutrido, pelas ruas da cidade.
    Lembro que em São Paulo, momentos antes de partir para o interior como costumeiramente fazia nas noites de domingo, discuti com minha mãe. Acabei ficando sem o jantar antes da viagem e sem a minha minguada mesada. A solução era pedir carona na estrada. Os tempos eram outros.
    Era ainda de manhã em Piracicaba quando fomos dispensados da primeira aula. O estômago continuava reclamando e eu teria que me virar, pois por falta de pagamento eu estava na lista negra da república. Consequentemente... excluído da ração, desculpe, da alimentação.
    Andando pelas imediações vislumbrei uma agitação de carpinteiros, garçons e faxineiras no interior de um restaurante que seria inaugurado naquela noite. Fui lá pra dentro com a maior cara de pau e tive um lampejo de idéia vendo um reluzente piano de cauda sobre um tablado, novinho em folha.
    O cara que parecia ser o chefão da casa (e que nem olhou pra mim), disparava ordens para que tudo ficasse pronto no horário.
     Esperei uma folguinha do cidadão e arrisquei:
    - Bom dia!
    - Bom dia! , o cara respondeu ainda sem olhar.
     Eu continuei:
     - Bonito local. O que vai ser?
    - Restaurante e casa de shows!
   O cara virou-se pra mim e deu pra perceber seu ar de desaprovação frente à um careca mal vestido e com estômago mais vazio que cérebro de profissional de futebol.
    Eu emendei:
    -Tô na faculdade. Mas também sei tocar piano.
    E o cara:
    - Parabéns.
   E gritou para um zé mané ali perto:
    - Já falei que não é aí que quero o balcão. Empurre mais pra lá!
    E me deixou sozinho sem dizer pra onde ia.
    Fui atrás e insisti:
    - Posso fazer uma proposta?
    O cara nem respondeu.
    - Se o senhor me der agora um baurú e uma coca eu toco piano de graça hoje à noite na inauguração.
    Ele me olhou denotando pena e gritou em direção à cozinha:
    - Ô Lourdes! Traga um pf (prato feito, o feijão com arroz, salada e bife dos empregados que trabalham na casa) pro rapazinho aqui!
    Daí olhou bem na minha cara e falou baixinho.
    - Abrir o piano? Tocar? Ah ah ah ah...Não pense em música. Coma o que quiser. Já passei fome também uma vez. Sei como é. Venha quando quiser aqui na hora do almoço que tem um pf grátis pra você. Mas... só uma coisa. Não ponha a mão no piano. É novo e é só pra quem sabe tocar. Tudo bem?
    A simples menção de que eu iria comer alguma coisa me fêz responder “tudo bem” rapidinho.
    Êta pf gostoso e restaurador de energias.
    No dia seguinte, obviamente, eu já estava lá atrás de mais uma refeição. O chefão me viu e ordenou mais um pf pra mim.
    Haviam vários fregueses almoçando e me senti na obrigação de recompensar a gentileza:
    - Oi, sr. Fulano (não me lembro o nome do proprietário bom samaritano, mas nada confiante em meus alegados dotes musicais), abra o piano que vou tocar pro pessoal que está almoçando.
    - Nada disso! Esse piano é uma relíquia de família. Só mesmo para quem sabe tocar.
    - Ok!, encerrei a questão.
    Resumindo...passei vários dias almoçando gratuitamente naquele venerado restaurante. Nada de piano, claro.
    Passam-se os anos. Meados da década de 70. Eu já como o dr. Maurício Camargo Brito em São Paulo. Sou convidado para um jantar de confraternização da turma da Odontologia em Piracicaba, da qual participei no ano inicial. Um evento no restaurante mais requintado da cidade, com piano bar e tudo o mais. Inclusive um dos colegas da minha turma no jantar era o dr. Antonio Carlos de Campos, nas horas vagas maestro/diretor do Conservatório Musical de Tatuí e um dos maiores pianistas clássicos e de jazz que já ouvi tocar.
    No meio do festim eis que surge o proprietário da casa...e era ninguém menos que o sr. Fulano. O mesmo sr. Fulano, amigo e benfeitor do meu aparelho digestivo há quase uma década. Ele logicamente não me reconheceu e nem lembraria dos tantos pf’s passados. Me levantei e pedi um brinde para o benemérito cidadão, defensor dos fracos e oprimidos (eu, naqueles dias magros de faculdade). Como gosto de falar, relembrei pra todos ali, tintim por tintim, o episódio dos pfs. E ainda brinquei sobre a não permissão para tocar piano.
     Ele ficou todo lisonjeado e, após me agradecer, finalizou:
     - Obrigado por tudo. Só que com relação ao piano, a situação é a mesma. Peço que ninguém aqui queira tocar piano. É um instrumento valioso, o pianista contratado é profissional, e os clientes o adoram. Bom apetite.



  

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