Essa aconteceu no final dos anos 80. Era a época de ouro do quinteto Blues Band e o nosso guitarrista Giba foi convidado a montar um grupo de 8 músicos para acompanhar a tournée brasileira de um afamado cantor do Japão. O nome do astro era Akira e viria sob uma tremenda publicidade da mídia dirigida à colônia nipônica do Brasil, notadamente São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná.
Mesmo sabendo que o repertório seria basicamente pop e japonês, e sem levar em conta se líamos partituras musicais o suficiente para um compromisso dessa envergadura, o Giba na seleção dos músicos naturalmente deu preferência a nossa panelinha da Blues Band - Jacaré e Gersão nos saxofones, Xuxú na batera e eu no teclado para fazer as cordas, um elenco experimentado no jazz, blues e rock mas com habilidade duvidosa para sair acompanhando um cantor do Japão e seus folclores.
O contrato era bem vantajoso financeiramente e aceitamos a missão de imediato. Para não correr riscos, o Giba chamou o ótimo Vardé, um experiente contrabaixista que toca tranquilamente tanto de ouvido como por música. Dois outros intrumentistas de sopro completavam o time.
Conforme a responsabilidade e organização dos japoneses, as partituras musicais chegaram via fax 30 dias antes da data da estréia da tournée, todas elaboradas por um rigoroso maestro, o braço-direito do cantor Akira que inclusive viria junto para reger e atuar no piano acústico. As partes foram distribuídas entre nós músicos com a obrigação de cada um estudar a sua e vir pronto para o ensaio já com o cantor. E teríamos um mês inteiro para isso. Lembro-me o quanto me assombrei ao abrir as partituras das cordas do teclado (violino, viola, violoncelo, baixo) e dar de cara com uma complexidade sem igual. As pautas e os arranjos eram desafiadores até para concertistas veteranos do Teatro Municipal. Embora o repertório incluísse os conhecidos temas “My Way”, “Beguin the Beguine” e alguns pop de FM, a maioria era constituída de sucessos japoneses que eu dificilmente conseguiria tocar, como dizem os músicos, “de prima”. Mas pensei comigo mesmo:
-Tudo bem. Confio nos colegas. Eles saem tocando e eu vou atrás.
Apenas não imaginei no momento que meus colegas estivessem pensando a mesma coisa.
Um mês depois. Tarde agradável no então Dormente Bar na zona leste de São Paulo, hoje o badalado Stones da av. Anhaia Melo, palco do primeiro e único ensaio com o cantor Akira. Todos nós posicionados com os respectivos instrumentos à espera da chegada da comitiva japonesa. O ensaio era definitivo, pois o primeiro espetáculo da tournée seria já no dia seguinte. Uma reluzente limousine negra parou em frente ao bar e desceram quatro seguranças de óculos escuros para abrir as portas do carro e desembarcar o cantor com seu maestro. A cena me lembrou a chegada de Elvis Presley. Vieram também dois intérpretes, um para traduzir do idioma japonês para o inglês e o outro do inglês para nossa língua portuguêsa. Seria a forma de eles se comunicarem conosco. Acho que não conseguiram um só que traduzisse direto do japonês para o português. O cantor bonitão, nos seus 30 e poucos anos, mostrou-se muito amável e simpático, cumprimentando-nos um a um e imediatamente nos presenteando com caríssimas máquinas calculadoras japonesas, a novidade da época e de valor quase igual ao nosso alto cachê.
O maestro, por sua vez um japa de meia-idade com cara de poucos amigos, já entrou abrindo a boca:
私たちは、 1 つ 1 つ知っていることは、一部でわありませんでした多くの時間、私は希望を持っています。
Todos nós sem entender nada.
O primeiro intérprete se manifestou:
- He said that we have not much time and I hope that each one knows its part.
A maioria continuou sem entender até que o segundo intérprete finalizou:
- O maestro disse que não temos muito tempo e espera que cada um saiba a sua parte.
O maestro japonês prosseguiu:
私は私の手には、 tecladista ここにしたい。 近くにあります。
O primeiro intérprete dirigiu-se a mim:
- He wants you there in his hand. Nearby!
Eu entendi o seu inglês limpo. E pensei:
- Xiii...tô f...!
E o segundo intérprete fêz sua parte, completando minha sentença de morte:
- O maestro quer o tecladista do lado dele. Bem perto!
O pessoal riu baixinho e lá fui eu com meu valente Yamaha DX7 pra ficar ao lado do carrancudo japonês.
Depois de tudo acomodado o maestro sugeriu ao astro Akira para que ele se posicionase a uns metros lá fora para se calcular o tempo que ele levaria para vir ao palco compatível com a introdução que a banda estaria tocando. Em seguida falou:
私は、 4 回もカウントされ、バンドの紹介、スコア、明の時間ステージに到着したら」を参照してください。
- The conductor is going to tell the four times and the band of the introduction, as the score, and see if the right time of Akira arrive on stage.
- O maestro vai contar os quatro tempos e a banda dá a introdução, conforme a partitura. É para ver se dá tempo do Akira chegar ao palco.
すべての準備ができただろうか ?
- OK?
- Tá todo mundo pronto?
Daí então o japa maestro fêz um movimento com os braços e:
1 つ、 2 つ ...1 、 2 、 3 、 4...
Silêncio Total (?!??!).
O japa olhou para a cara do Xuxú, sentado na bateria e escondido atrás do bigode:
入力した理由でありませんでしたか ? それはあなた自身の党で書かれています !
O intérprete foi rápido:
- Why not played? It is written in your own score!
O Xuxú continuou atrás do bigode e o segundo intérprete falou pra ele:
- Por que você não tocou? Ele disse que tá tudo aí na sua partitura!
-Ah! Era eu que tinha que entrar? - o Xuxú perguntou.
E o glorioso cantor lá fora. Esperando.
O maestro falou meio impaciente:
私たちはもう一度行っています。
E contou:
1 つ、 2 つ ...1 、 2 、 3 、 4...
Nada! Só aquele silêncio comprometedor.
E o glorioso cantor lá fora. Esperando.
O maestro perdeu a calma com o Xuxú:
あなたが知っているか、または、スコアが何か知っていませんか ? あなたは、音楽家ですか ? あなたが音楽を読む方法を知っているか。
- He said that do you know or not what is the score. You are musician? Do you read music?- o intérprete tentou ser mais brando, embora o Xuxú não tenha entendido também.
Daí veio o cara com o nosso idioma:
- O maestro está perguntando se você sabe ou não sabe o que está na partitura? Ele quer saber se você é músico? Se você sabe ler música?
O Xuxú respondeu timidamente. Só seu bigode mexia em meio ao seus “s” sibilantes:
- Pô meu. Estou acostumado a tirar as músicas de ouvido. Se tiver uma fita aí (naquele tempo ainda eram fitas) é só colocar pra escutar que tiro a batera na hora.
Ninguém ali, a não ser os japoneses, conseguiu segurar as risadas.
O maestro e o intérprete inglês:
- ?!???!!
E o glorioso cantor lá fora. Esperando.
O maestro bateu com força sua mão no piano e disparou para a produção:
私は音楽を読む方法を知っている人は、ドラムのプロでありませんでした。ここで時間を無駄にした緊急を提供しています。
O primeiro intérprete ficou meio confuso e tentou em vão amaciar:
-You provide a professional drum who know how to read music, rush. He said that he did not come here to lose time.
Então veio o veredicto de compreensão geral:
- Ele quer urgente que tragam um baterista profissional que saiba ler música. Diz que não veio até aqui para perder tempo!
E o glorioso cantor lá fora. Esperando.
Para encurtarmos a estória. Trouxeram o cantor pra dentro e horas depois chegaram com o Lello, baterista da Banda Mantiqueira, que tão logo abriu a partitura comentou a dificuldade que qualquer músico encontraria. Eram 16 longos compassos na introdução da banda, só de bateria. Imaginem para o blueseiro Xuxú, acostumado a tocar de improviso, tocar no clima do momento, sem nunca ter visto aquele amontoado de notas e símbolos nas pautas, que mais pareciam desenhos de cachos de uva.
Colocaram o glorioso cantor no seu lugar lá fora mais uma vez. O maestro fez a contagem e o novo baterista rufou os 16 esperados compassos. Mas no momento em que a banda entrou tocando (por sorte minha não havia minha participação de teclado na partitura ainda) o que se ouviu foi um amontoado de notas desafinadas dos metais e tempos errados nos demais instrumentos. Notadamente dos dois instrumentistas de sopro forateiros. A maioria não lia música a contento e o maestro se desesperou, embora tenha se conscientizado de que não havia muito a se fazer. Quem sabe com um pouco de tempo e esforço chegaríamos a um resultado satisfatório.
E assim foi feito. O ensaio prosseguiu com calma e perseverança e a tournée brasileira do glorioso Akira foi um sucesso.
Sempre costumamos relembrar o episódio com muitas risadas. Desde quando o próprio Xuxú ainda não havia ido tocar com Elvis no céu. Ele ria conosco porque sabia que apenas pagou o pato na estória. Sua falta de sorte foi que tudo iniciava com a bateria. Eu confesso sem falta modéstia que o que me salvou foi o bom senso em não querer inventar muito, conhecer a fundo os temas standards e um pouco de bom gosto em encaixar algumas idéias próprias sobre os intricados arranjos do maestro japa. E olhe que toquei sob sua marcação cerrada.
Mas como já disse, no final tudo deu certo. As platéias vibraram e nós abocanhamos aquele cachê irrecusável.